A carne e a discriminação entre os géneros
Dois comentários no meu último post, fizeram-me lembrar a ligação que existe entre o consumo de carne e o modo como a preparamos, com certos aspectos tradicionalmente ligados à masculinidade. Andei a rever a matéria e encontrei coisas interesssantes. (Baseei-me no capítulo “Meat and gender hierarchies” do livro indicado no meu último post, para escrever este).
Quando nos alimentamos estamos a comer a natureza - nem sempre a comemos da mesma forma, ao longo da nossa passagem pela Terra, mas a verdade é que somos o único animal que cozinha o alimento, criando a principal fronteira entre a civilização e o mundo natural. Segundo o antropólogo Lévi-Strauss, cozinhar os alimentos é um processo universal segundo o qual a natureza é transformada em cultura, sendo os diferentes métodos de cozinhar apropriados para serem usados como símbolos de diferenciação.
Talvez não seja por acaso que gostamos mais de carne assada do que carne cozida. Talvez isso tenha a ver com o nosso passado evolutivo desdes os primeiros colectores e caçadores, aos agricultores e criadores de gado ancestrais.
A maneira como a carne é cozinhada fornece uma pista útil para compreender a natureza das pessoas, os seus valores, as suas instituições e o seu modo de ver o mundo. As culturas assentes no consumo de carne preferem assá-la (ou grelhá-la); as sociedades mistas, que tanto criam gado como também cultivam a terra, tanto assam como cozem os alimentos; as sociedades agrícolas, raramente comem carne e cozem mais as suas plantas.
Existe uma diferença psicológica entre assar ou cozer os alimentos. Assar é um processo que está mais perto do alimento cru, sendo a carne directamente exposta ao fogo. O alimento cozido por outro lado, requere um processo de mediação: é colocado numa panela com água e depois colocado no fogo, sendo a panela e a água os mediadores entre a carne e o fogo aumentando as fronteiras entre a cultura e a natureza. Já o processo de assar a carne mantém apenas uma leve fronteira entre a civilização e o mundo natural, além de que a carne é usualmente assada na sua parte exterior ficando o interior vermelho ou mesmo em sangue, tornando o alimento mais parecido com a carne do animal do que a carne cozinhada.
Assar a carne sempre esteve associado com poder, privilégio e celebração enquanto que cozer o alimento sempre esteve associado com valores curativos e regenerativos, (o célebre caldinho de galinha) e com frugalidade.
Na maior parte das culturas, assar a carne está reservado para ocasiões especiais, dias de festa, banquetes, domingos, casamentos, e está associado a robustez, a virilidade; a cozedura é mais rotineira e tem menor estatuto.
A carne vermelha, cheia de sangue, especialmente a de vaca, é apreciada devido a algumas qualidades tradicionalmente aceites: confere força, aumenta a agressividade, acende a paixão, estimula a sexualidade. Por isso, tem sido associada com a masculinidade e as qualidades masculinas enquanto que as carnes brancas (sem sangue) têm sido associadas com a feminilidade e qualidades femininas. Não terá sido por acaso que, a antropóloga Peggy Sand, sem nenhuma surpresa, verificou que as economias baseadas nos animais são dominadas e conduzidas pelos homens enquanto que as baseadas na agricultura são mais orientadas para o poder feminino (note-se que, de um modo geral, as plantas são mais percebidas como uma dádiva da natureza e menos como uma presa ou como uma propriedade, como acontece com os animais).
Os homens têm desde há muito usado a carne como uma arma de controlo social, como meio de fazer com que as mulheres aceitem um estatuto de subserviência na sociedade. Um sítio onde a hierarquia da carne é muito evidente é na Inglaterra. Numa primeira pesquisa feita em 1863, os investigadores verificaram que nas comunidades rurais as mulheres e as crianças “comiam as batatas e olhavam para a carne”. Nas classes pobres urbanas as mulheres reservavam a carne para os seus maridos acreditando que eles precisavam dela para desempenharem o seu papel de provedores da família. As mulheres comiam carne uma vez por semana mas os homens quase diariamente.
Pouco mudou nos hábitos de consumo de carne nas classes pobres trabalhadoras urbanas e rurais nestes últimos cento e tal anos. Nos locais onde a carne é rara ou cara é quase sempre oferecida em primeiro lugar ao chefe de família. Mas, mesmo em países como os Estados Unidos, onde a carne é abundante e barata, a norma prevalecente coloca os homens no topo da hierarquia. Eu lembro-me disso acontecer aqui, quando era pequena. Sempre me fez confusão verificar, quando ia a casa de alguém conhecido que os melhores nacos de carne eram dados ao dono da casa. Fazia-me mais confusão ainda porque na minha casa os melhores bocados eram para os filhos.
Ironicamente, apesar da nossa moderna cultura, altamente tecnológica, se ir afastando cada vez mais do trabalho físico, alguns homens parecem muito determinados em perpetuar o mito masculino associado à carne, talvez por ela representar o último reduto do machismo. Existem poucas dúvidas quanto ao forte simbolismo que liga o consumo da carne e o machismo nas culturas ocidentais, como mostram as estatísticas sobre violência doméstica que revelam uma forte ligação entre eles - muitos homens usam a ausência de carne como pretexto para a violência contra as mulheres, acreditando que, a sua masculinidade está a ser negada ao não lhes ser servida uma refeição de carne.
Um outro aspecto interessante é o processo de assar a carne ser uma actividade dominantemente masculina, não só entre muitas tribos de indios americanos e outras sociedades de caçadores, como nas sociedades ditas ocidentais. Aliás, basta deitar atenção: quando se faz um churrasco, quando se faz a nossa espetada, usualmente são os homens que tomam conta da carne. Já o processo de cozer a carne é uma actividade predominantemente feminina. Ninguém esperaria ver cowboys a cozerem a carne!
A conclusão a que chego, é esta: somos animais altamente políticos e a carne que comemos e a forma como a comemos, representa muito da nossa forma de fazermos política e de estruturarmos as nossas sociedades. Isso está enraizado nas práticas alimentares dos nossos antepassados (não estou a justificar o machismo!).
Veio-me agora à cabeça que nos talhos, são os homens que dominam. E nos matadouros. E nas caçadas. Por que será?
Quando nos alimentamos estamos a comer a natureza - nem sempre a comemos da mesma forma, ao longo da nossa passagem pela Terra, mas a verdade é que somos o único animal que cozinha o alimento, criando a principal fronteira entre a civilização e o mundo natural. Segundo o antropólogo Lévi-Strauss, cozinhar os alimentos é um processo universal segundo o qual a natureza é transformada em cultura, sendo os diferentes métodos de cozinhar apropriados para serem usados como símbolos de diferenciação.
Talvez não seja por acaso que gostamos mais de carne assada do que carne cozida. Talvez isso tenha a ver com o nosso passado evolutivo desdes os primeiros colectores e caçadores, aos agricultores e criadores de gado ancestrais.
A maneira como a carne é cozinhada fornece uma pista útil para compreender a natureza das pessoas, os seus valores, as suas instituições e o seu modo de ver o mundo. As culturas assentes no consumo de carne preferem assá-la (ou grelhá-la); as sociedades mistas, que tanto criam gado como também cultivam a terra, tanto assam como cozem os alimentos; as sociedades agrícolas, raramente comem carne e cozem mais as suas plantas.
Existe uma diferença psicológica entre assar ou cozer os alimentos. Assar é um processo que está mais perto do alimento cru, sendo a carne directamente exposta ao fogo. O alimento cozido por outro lado, requere um processo de mediação: é colocado numa panela com água e depois colocado no fogo, sendo a panela e a água os mediadores entre a carne e o fogo aumentando as fronteiras entre a cultura e a natureza. Já o processo de assar a carne mantém apenas uma leve fronteira entre a civilização e o mundo natural, além de que a carne é usualmente assada na sua parte exterior ficando o interior vermelho ou mesmo em sangue, tornando o alimento mais parecido com a carne do animal do que a carne cozinhada.
Assar a carne sempre esteve associado com poder, privilégio e celebração enquanto que cozer o alimento sempre esteve associado com valores curativos e regenerativos, (o célebre caldinho de galinha) e com frugalidade.
Na maior parte das culturas, assar a carne está reservado para ocasiões especiais, dias de festa, banquetes, domingos, casamentos, e está associado a robustez, a virilidade; a cozedura é mais rotineira e tem menor estatuto.
A carne vermelha, cheia de sangue, especialmente a de vaca, é apreciada devido a algumas qualidades tradicionalmente aceites: confere força, aumenta a agressividade, acende a paixão, estimula a sexualidade. Por isso, tem sido associada com a masculinidade e as qualidades masculinas enquanto que as carnes brancas (sem sangue) têm sido associadas com a feminilidade e qualidades femininas. Não terá sido por acaso que, a antropóloga Peggy Sand, sem nenhuma surpresa, verificou que as economias baseadas nos animais são dominadas e conduzidas pelos homens enquanto que as baseadas na agricultura são mais orientadas para o poder feminino (note-se que, de um modo geral, as plantas são mais percebidas como uma dádiva da natureza e menos como uma presa ou como uma propriedade, como acontece com os animais).
Os homens têm desde há muito usado a carne como uma arma de controlo social, como meio de fazer com que as mulheres aceitem um estatuto de subserviência na sociedade. Um sítio onde a hierarquia da carne é muito evidente é na Inglaterra. Numa primeira pesquisa feita em 1863, os investigadores verificaram que nas comunidades rurais as mulheres e as crianças “comiam as batatas e olhavam para a carne”. Nas classes pobres urbanas as mulheres reservavam a carne para os seus maridos acreditando que eles precisavam dela para desempenharem o seu papel de provedores da família. As mulheres comiam carne uma vez por semana mas os homens quase diariamente.
Pouco mudou nos hábitos de consumo de carne nas classes pobres trabalhadoras urbanas e rurais nestes últimos cento e tal anos. Nos locais onde a carne é rara ou cara é quase sempre oferecida em primeiro lugar ao chefe de família. Mas, mesmo em países como os Estados Unidos, onde a carne é abundante e barata, a norma prevalecente coloca os homens no topo da hierarquia. Eu lembro-me disso acontecer aqui, quando era pequena. Sempre me fez confusão verificar, quando ia a casa de alguém conhecido que os melhores nacos de carne eram dados ao dono da casa. Fazia-me mais confusão ainda porque na minha casa os melhores bocados eram para os filhos.
Ironicamente, apesar da nossa moderna cultura, altamente tecnológica, se ir afastando cada vez mais do trabalho físico, alguns homens parecem muito determinados em perpetuar o mito masculino associado à carne, talvez por ela representar o último reduto do machismo. Existem poucas dúvidas quanto ao forte simbolismo que liga o consumo da carne e o machismo nas culturas ocidentais, como mostram as estatísticas sobre violência doméstica que revelam uma forte ligação entre eles - muitos homens usam a ausência de carne como pretexto para a violência contra as mulheres, acreditando que, a sua masculinidade está a ser negada ao não lhes ser servida uma refeição de carne.
Um outro aspecto interessante é o processo de assar a carne ser uma actividade dominantemente masculina, não só entre muitas tribos de indios americanos e outras sociedades de caçadores, como nas sociedades ditas ocidentais. Aliás, basta deitar atenção: quando se faz um churrasco, quando se faz a nossa espetada, usualmente são os homens que tomam conta da carne. Já o processo de cozer a carne é uma actividade predominantemente feminina. Ninguém esperaria ver cowboys a cozerem a carne!
A conclusão a que chego, é esta: somos animais altamente políticos e a carne que comemos e a forma como a comemos, representa muito da nossa forma de fazermos política e de estruturarmos as nossas sociedades. Isso está enraizado nas práticas alimentares dos nossos antepassados (não estou a justificar o machismo!).
Veio-me agora à cabeça que nos talhos, são os homens que dominam. E nos matadouros. E nas caçadas. Por que será?
2 Comentários:
Olá
Interessante texto e muito bem fundamentado..., como sempre.
Abraço
19/03/2008, 10:46:00
Super interessante o texto...
De facto nunca tinha pensado... Mas é verdade os homens é sempre associado à carne vermelha e com sangue e a mulher à carninha branca...
Porque o caçar e as carnes parece ser um trabalho que necessita de força!
Já reparou que na Madeira não existe peixeiras no mercado?! No continente só existe peixeiras... na madeira são os pesquitos (ou lá como se escreve)...
Todavia nos SuperMercados existe um contra balanço na secção do peixe...
Será que existe alguma explicação?!
24/03/2008, 14:41:00
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